terça-feira, 27 de outubro de 2009

Lembro-me de um poema...



Quem, sobretudo aqueles que nos anos 60 tinham 20 anos, não se lembra da Pedra Filosofal, cantada no final dessa década prodigiosa por Manuel Freire e tão repetida ao longo dos tempos? (Eles não sabem que o sonho/ é uma constante da vida/ tão concreta e definida/ como outra coisa qualquer…).” António é o meu nome, Rómulo de Carvalho”, poderia ter sido a resposta para aqueles que trautearam vezes sem conta esta bela canção, mesmo desconhecendo o nome do autor do poema, que termina com esta bela estrofe: 
(Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida. /Que sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança/ como bola colorida/ entre as mãos de uma criança. /




Não vou falar de Rómulo de Carvalho (1906-1997), ou do seu pseudónimo António Gedeão, desse poeta brilhante, licenciado em Físico-químicas, que deixou -  especialmente aos portugueses – uma mão cheia de estudos marcantes, uma vasta obra como historiador das ciências, tornando-as acessíveis à compreensão do grande público, e que recusou ser assistente da Faculdade de Ciências do Porto, porque ambicionava particularmente dar aulas “a gente mais jovem, para a entusiasmar”.

Vou falar-vos do Sonho a que Gedeão se refere no seu poema “Pedra Filosofal”. Um exemplo:
O “sonho” dos estudantes e trabalhadores que deram o corpo na luta de ruas em Paris, que acabaria por se estender a outras cidades francesas e europeias, à Califórnia. O “sonho” do “Maio 68” também chegou ao chamado “Terceiro Mundo”, onde já se lutava, como em Angola, por um direito essencial: a independência das colónias;  sonho de um mundo mais feliz não conseguiu -nem pretendia – tomar o poder. Mas a aspiração ao sonho, à liberdade e à poesia, bem como a abertura à Cultura, ficaram para sempre!
Outro exemplo:
O “sonho”de Martin Luther King é hoje uma realidade inequívoca. Efectivamente a luta pelos “direitos cívicos” chegou a uma espécie de apoteose com a candidatura de Barack Obama, já que poder ser presidente é, seguramente, o direito civil máximo do cidadão de uma República. A sua eleição veio dar razão a Luther King e ao poeta Gedeão.

E, tal como Martin Luther King, também eu tive um sonho. Tenho os meus sonhos. Como aquela velhota de uma belíssima canção, que o Waldemar Bastos canta de forma única, definitiva:” posso morrer porque já vi Angola independente”.
Descia a Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa, a caminho do Coliseu, que nessa noite acolhia o quarteto do saxofonista americano Joshua Redman. Era um Julho de 1999, quente, e Lisboa estava quase deserta.
Cheguei ao Coliseu. Quando a música começou seguia-a com uma perplexidade quase infantil. “Blues on Sunday”, o original que abriu o concerto, deixou logo as marcas da noite: autoridade no discurso; um “punch” extraordinário, poucas vezes praticado no passado, e sabiamente controlado. E lembro-me da ferocidade através da qual o saxofonista começou por arrasar com uma peça “obrigatória”: Summertime. A vertigem com que atacou, no sax alto, alguns originais seus; as transfigurações suscitadas, no sax soprano, pelo modalismo de um tema da dupla Lennon-McCartney “Eleanor Rigby”, confirmaram o que desconfiava: Joshua tinha crescido e abandonado o excessivo tecnicismo, por vezes bastante meticuloso, que, nos anos iniciais, o marcara bastante. A terminar, dois temas: um de Jobim/Chico Buarque “Retrato em Branco e Preto” e a balada “Never End”: a explanação perfeita, uma mão cheia de excelentes ideias melódicas, muito bem gizadas, o arrebatamento e uma enorme criatividade emocional.
No piano, Aaron Goldberg revelou-se um músico altamente talentoso. Reuben Rogers foi subtil e inventivo no contrabaixo e o baterista Gregory Hutchinson não deixou de revelar inteligência e sentido de grupo, contribuindo de forma notável para a coesão do quarteto de Joshua Redman.
Como Lisboa tem vários locais para se ouvir Jazz depois do sono dos outros, acabei por desembarcar no meu preferido: Hot Clube, na Praça da Alegria. Precisava urgentemente de digerir o concerto. A música tinha-se-me colado ao corpo e à alma. As ruas que me conduziram ao Hot tinham-se transformado numa planura de encantamento. Era como se Joshua (me/nos) dissesse:
“Sei de onde venho, sei para onde e por onde não quero ir, mas talvez não saiba, ainda, para onde e por onde quero ir. O que será, será! ”. É esta a essência, o fundamento do Jazz: “o som da surpresa” e a capacidade de intrigar, preocupar, mexer connosco, acabar com as certezas confortáveis e as verdades definitivas e imutáveis!

Desde que, em 1991, o seu nome chegou às páginas das revistas de Jazz como vencedor da “Thelonius Monk International Saxophone Competition”, Joshua Redman tornou-se, involuntariamente, um homem na linha de fogo da batalha que, nos anos noventa, mais vítimas tem feito no país do Jazz (USA) - foi ali que nasceu, muito embora existam, felizmente, extensões criativas e originais na Europa, no Japão, em África e… um pouco por toda a parte -, a que opõe os profetas da verdade do futuro aos guardadores dos templos do passado.
Quando surgiu o seu primeiro disco na Atlantic (um contrato decorrente do prémio “Thelonius Monk”, Joshua ficou logo marcado para uma parte da crítica: não só se tratava de mais um jovem músico, ainda por cima nascido para o mundo em berço multinacional, como era filho de Dewey Redman, saxofonista maior que a história e as editoras sempre trataram de modo menor. Acresce ainda que o tenor de Joshua se afeiçoava mais ao passado do que à música nascida no seu tempo. Valeu-lhe, para a excomunhão não ser definitiva, o evidente talento e a óbvia competência técnica. Afastado da influência directa do pai, que o mesmo é dizer da herança ornetteana (Ornette Coleman), o jovem Redman banhou-se noutras águas, de Dexter Gordon a Gene Ammons até John Coltrane mas, acima de todos eles, Sonny Rollins. Com o tempo e os discos seguintes, Joshua cresceu musicalmente e não foi preciso esperar muito para confirmar que uma nova voz, personalizada, nascia nas suas mãos. Definitivamente o homem cresceu!

Será este saxofonista que tocará em Luanda nos dias 13 e 14 de Novembro, no Hotel Trópico, numa iniciativa em saudação às comemorações de uma data prodigiosa: 11 de Novembro; data que marca o “regresso” de Angola à História, um sonho acalentado durante séculos de humilhação.
Foi este o meu sonho lisboeta, em Julho de 1999: partilhar um dia, em Luanda, com todos - sentadas e sentados - a música deste quarteto: Joshua Redman, Aaron Goldberg, Gregory Hutchinson e Reuben Rogers - músicos competentes e cumpridores já com as malas preparadas para a viagem a Luanda!

Também mereço, como os poetas, os meus sonhos.
Jerónimo Belo
Obs.: Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 26/10/2009

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